Dia das Mulheres

por Alissa Munerato

O Dia das Mulheres é frequentemente lembrado por ser uma data onde as representantes deste sexo recebem flores e homenagens por serem as mães, esposas e filhas sensíveis, dispostas e empáticas, sem as quais os homens não sobreviveriam.

Compaixão, amar crianças, dependência, sensibilidade, carência. Liderança, agressividade, ambição, mente analítica, competitividade, dominância, independência. Todos sabemos a quais sexos pertencem as duas listas de palavras anteriores. Mas por que existem traços femininos e masculinos? Existe alguma razão fisiológica?

corpus callosum

Cientistas ao longo dos anos acreditaram que sim. Algumas diferenças foram encontradas, como diferenças hormonais que explicam parcialmente alguns comportamentos (sexuais, parentais, entre outros) e também um aumento do volume do corpo caloso no cérebro das mulheres. O Corpo Caloso é a área que conecta os dois hemisférios do encéfalo e ‘transporta’ as informações de um para outro. Isso reforçaria a ideia de que a mente masculina trabalha com as informações de maneira segmentada, o que propiciaria aos homens um cérebro propenso à lógica e tarefas pontuais, enquanto a feminina distribui a informação, o que ocasionaria em uma facilidade maior de performances linguísticas e empatia, por exemplo.

A partir de 1980 foi realizada uma série de revisões de trabalhos anteriores sobre o tema. Em 1991, com a popularização da Ressonância Magnética Funcional, os pesquisadores Katherine Bishop e Douglas Wahlsten descobriram que não havia diferenças significativas comparativamente nos cérebros de ambos os sexos. A conclusão do estudo foi a mesma que os reexames da década 80: não há diferenças funcionais significativas entre os dois corpos calosos.

Mas… e a testosterona? Não somos meninas ou meninos desde o útero?

 

Nas primeiras semanas de gestação os fetos de sexo masculino e feminino têm as mesmas gônadas primordiais, ou seja, são indiferenciadas. Por volta da sexta semana um gene do cromossomo Y libera ondas de testosterona que atingem seu pico por volta da décima sexta semana. O seu papel conhecido é o da diferenciação das gônadas em testículos e ovários. Depois da vigésima sexta semana, o nível de testosterona em ambos os sexos não atinge diferença significativa até três meses após o nascimento dos bebês. Não se sabe ao certo os efeitos desta nova onda hormonal nos bebês de sexo masculino.
Essa descoberta deu início à hipótese ativa-organizacional: e se essas ondas de testosterona organizarem o cérebro masculino de maneira diferente do cérebro feminino?

Planet of the Apes

Embora a hipótese seja considerada como um fato do desenvolvimento humano, não há nada que suporte a teoria em humanos no âmbito comportamental.

Os experimentos de aplicação de hormônios esteroides foram feitos em ratos e macacos. Mesmo em macacos as evidências apontam que a injeção de testosterona nas fêmeas não aumenta o nível de agressividade fora de condições instintivas como a territorialidade, presentes na espécie.

Outro estudo frequentemente citado é o de Simon Baren-Cohen, onde foram analisados bebês recém-nascidos de um dia e meio de idade. Foram oferecidos a 101 bebês, uma de cada vez, a oportunidade de observar a face de uma das pesquisadoras e um celular em movimento, lado a lado. A ideia era medir o nível de interesse entre ambos os estímulos: empatização vs. sistematização. Os bebês de ambos os sexos olharam para o rosto da pesquisadora por menos de 50% do tempo, mas os meninos observaram o celular por um período maior (51% para meninos em comparação aos 41% para meninas) e a pesquisadora por um período menor (49% para as meninas e 41% para os meninos).

A pesquisa causou noções de que as garotas são programadas para observar rostos e os garotos para objetos em movimento. A conclusão foi ecoada pela mídia ao redor do mundo. Infelizmente foi apontado diversas vezes que o estudo tinha condições metodológicas falhas: não levava em consideração que os bebês poderiam estar irritados, sonolentos e desatentos. Motivo pelo qual os pesquisadores normalmente oferecem os dois estímulos de uma só vez para que possa ser medido o tempo de visualização e interesse do bebê por cada um dos eventos, não separadamente como foi feito. Também há a noção de que os bebês estavam deitados e vestidos em cobertas e roupas rosas ou azuis, dando dicas sobre o seu sexo, o que pode causar viés no tratamento de cada sujeito.

sapatinhos

Quando pesquisas sobre gênero são feitas em bebês, é requisitado que eles estejam vestidos com roupas neutras e que não deem dicas sobre seu sexo. Vários aspectos da metodologia utilizada causaram o comprometimento dos dados e tornou a pesquisa inválida. Quando o estudo foi refeito com as condições adequadas descritas acima, não foi encontrada nenhuma diferença de padrão de visão entre os grupos de bebês dos dois sexos.

O córtex pré-frontal é um dos lobos do nosso encéfalo. Ele é o que majoritariamente nos diferencia dos outros mamíferos. Algumas funções dele incluem organização de comportamento, atenção e percepção, e é apelidado de “comitê executivo”. Entre suas várias designações, o córtex pré-frontal pode reprimir instintos através do aprendizado e torna completamente possível que, por exemplo, um casal tome a decisão de não se relacionar sexualmente sem a proteção contraceptiva adequada, adotando a política do planejamento familiar, diferenciando-os de qualquer outro mamífero. E o que torna o aprendizado possível?

Neste ponto da discussão é interessante apresentar a ideia de plasticidade. Plasticidade é o termo usado para designar a capacidade de mudança de neurônios e suas estruturas. Pode-se dizer que quanto mais ‘uso’ uma parte do cérebro tem, mais incentivo ela recebe, causando uma hipertrofia na área. O contrário também é válido: quanto menor o ‘uso’, maior a atrofia.

neurons

Para exemplificar podemos lembrar de certas situações: um indivíduo começa a frequentar aulas de dança. Seu alcance motor é limitado para vários movimentos básicos da dança a primeiro momento, mas após alguns anos, torna-se fácil e automática a prática dos passos e movimentos. A ideia também se aplica ao comportamento: por que visitamos psicólogos para fazer terapia? Seria possível modificar a organização neuronal através do exercício terapêutico de incentivar ou conter de certos comportamentos? 
Acredita-se, através do conceito de plasticidade, que sim, em oposição à ideia presente na ciência do século XIX, a de hard-wired brain, ou seja, um cérebro de estruturas fixas e “duras”. Cada parte do cérebro desempenharia sua própria ação, sem conexão entre outras estruturas. Hoje em dia este conceito segregacionista dentro da neurociência vem sendo descreditado, ajudando a desestabilizar vários “neuro-mitos”, incluindo os que envolvem “neurossexismo”.

A partir disto, o que, então, tornaria as mulheres em pessoas sensíveis, dependentes e empáticas? Aplicando a ideia de plasticidade neural podemos chegar no quesito da neuroaprendizagem. O quê ensinamos às nossas crianças e adolescentes? Como? Quando? Pense nos seus filhos, sobrinhos ou no estereótipo infantil presente na sociedade e, partindo disso, identifique na seguinte lista de palavras o que é ‘brincadeira de menino’ e o que é ‘brincadeira de menina’: casinha, carrinho, videogame, boneca, forninho, lutinha. Mais simples que isso, procure em qualquer loja de departamentos: brinquedo de menina e brinquedo de menino. A diferença é gritante. E as crianças percebem desde muito cedo a separação que lhes é imposta. Por mais que os pais tentem evitar a discriminação de gênero, ainda há a publicidade infantil, os amiguinhos na escola, entre várias outras influências difíceis de evitar.

Exemplo de influência externa à educação parental, é o recente estudo de Victor Lavy e Edith Sand, que mostra o viés de educadores e professores em relação ao gênero de seus alunos. Os dados foram colhidos em alunos da sexta-série, de 2002 a 2004, e se tratavam de notas deles nas disciplinas de Matemática, Língua Inglesa e Língua Hebraica. O resultado geral mostrou que os professores estavam mais propensos a dar notas maiores nos exames de Matemática às garotas quando não sabiam o seu sexo. Ou seja, quando as garotas não colocavam seus nomes nos testes, elas atingiam melhores resultados. A consequência disso envolve a estimulação dessas crianças: quando recebem maiores notas, tendem a manter ou aumentar seu desempenho nos próximos testes. Se as garotas são desestimuladas a perseguir o estudo da Matemática, elas tendem a ter desempenhos menores no futuro, o que também foi estudado em outra pesquisa, comparando as notas das mesmas matérias de alunos entre a oitava e a décima segunda séries.

meninaSeriam sensibilidade e empatia algo praticado pelas mulheres desde sua infância, através de brincadeiras que envolvem cuidar e nutrir suas bonecas, transformando-as, portanto, em características femininas a nível de organização neuronal? Seriam os homens ‘programados’ mentalmente à agressividade pelas brincadeiras de luta com bonecos de ação e desenhos violentos, ou à lógica matemática, propiciada pelos videogames e computadores? Num mundo de tanta transformação cultural seria possível supor que homens têm características masculinas e mulheres têm características femininas?

E, finalmente: é coincidência que, conforme a opressão às mulheres desaparece, elas comecem a surgir com nomes importantes mais frequentemente na ciência? Isto ainda é um paradigma a ser desvendado.

 

Referências:

On The Origins of Gender Human Capital Gaps: Short and Long Term Consequences of Teachers’ Stereotypical Biases. Victor Lavy, Edith Sand. NBER Working Paper No. 20909. Issued in January 2015

The organizational-activational hypothesis as the foundation for a unified theory of sexual differentiation of all mammalian tissues. Arthur P. Arnold. Horm Behav. 2009 May; 55(5): 570–578.

Measures of gender differences in the human brain and their relationship to brain weight. de Lacoste MC1, Adesanya T, Woodward DJ. Biol Psychiatry. 1990 Dec 1;28(11):931-42.

Sex differences in the human corpus callosum: myth or reality? Bishop KM, Wahlsten. Neurosci Biobehav Rev. 1997 Sep;21(5):581-601.

Psychotherapy and brain plasticity. Daniel Collerton. Front Psychol. 2013; 4: 548.
Hormones and human sexual behavior. John Bancroft. Journal of Sex & Marital Therapy. 10(1), 3- 21. 1984.

Pre-frontal executive committee for perception, working memory, attention, long-term memory, motor control, and thinking: A tutorial review. Bill Faw. Consciousness and Cognition. 2003. 12(1), 83-139.

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