Dormir para aprender – a função do sono na aprendizagem

por Katarina Duarte Fernandes

“Neurocientistas anunciam novo método para aprender dormindo, mas sem fones de ouvido ou gravações cansativas”, essa já foi uma das manchetes principais de um jornal televisivo ano passado, e já se repetiu em outros lugares.

sleeping, memory - Vector

É impressionante como a promessa de se aprender algo enquanto se dorme continua tão atraente quanto na década de 80 quando houve uma explosão de métodos que prometiam aprendizados dos mais diversos tipos, até mesmo de novos idiomas; durante as horas de sono, fitas com gravações para serem ouvidas quando se ia dormir se tornaram incrivelmente populares. Em meio a rotinas cada vez mais corridas e que exigem de praticamente todos, a habilidade de darem conta de múltiplas tarefas durante o dia, aliadas a uma avalanche de estímulos que nos assola a cada momento na vida moderna eis que surge novamente esse anseio por aproveitar essas horas que podem até parecer perca de tempo.

Após os métodos das gravações cansativas a que a reportagem dessa semana fez alusão terem sido desacreditados, muitos voltaram a considerar as horas do dia gastas na cama como algo de última necessidade em meio a tantas coisas por fazer, mesmo que há muito se saiba que longe de o nosso organismo e muito menos nosso cérebro estarem como que desligados nesse período, há uma intensa atividade, e que é sim essencial para a saúde ter uma boa e revigorante noite de sono.

No entanto não é raro estudantes, na busca por estudar tudo que deveriam ter aprendido durante todo o período de aulas, passam a época de provas se privando constantemente de sono, chegando muitas vezes a extremos e acreditando que seu desempenho está muito bom assim, e que depois dormirão para “recuperar” o sono perdido.  Esse discurso é o mais ouvido entre estudantes de diversos níveis acadêmicos e idades, e segundo os resultados de um estudo publicado em 2012 da Universidade de Buscharest na Romênia, jovens estudantes em privação de sono de 24 horas podem até ter, de fato, um elevado desempenho em certas atividades referentes a memória de curto prazo e atenção, pois o organismo em privação fica em alerta máximo durante um tempo como um mecanismo de defesa. Mas o mesmo estudo cita estudos anteriores os quais mostram que depois há uma queda nesse desempenho, afinal esse nível de alerta que exige um imenso gasto energético somado à privação de sono, que impede a recuperação do sistema, não é de se estranhar que o organismo comece a entrar em colapso em alguma hora. Até mesmo o Exame-de-Polissonografiafuncionamento dos neurônios e de diversas partes do cérebro se comprometem com a privação, dando destaque para o comprometimento das funções corticais (que são as de nível superior), como atividades que envolvem raciocínio, decisões, pensar de forma lógica, o uso da linguagem e de símbolos, entre outras.

Sabemos também, devido uma longa linha de pesquisas que começou na década de 1990 e ganhou muita força nos últimos 20 anos, que é durante os diferentes estágios do sono que as memórias do dia de fato se consolidam se tornando mais estáveis. E ainda mais, um estudo dos americanos Robert Stickgold e LaTanya James e do alemão J. Allan Hobson em 2000 verificou que voluntários que foram privados do sono na noite seguinte ao aprendizado, mesmo que tivessem dormido um dia depois para “compensar” não melhoravam seu desempenho na tarefa treinada durante o dia como acontecia após uma noite de sono logo após o dia do treino. E até tentaram determinar em qual estágio do sono essa consolidação ocorria. O resultado é que ambos os estágios são importantes, pois os que puderam dormir uma noite inteira tinham um desempenho muito melhor do que os que apenas tiveram a primeira ou a segunda metade da noite de sono, embora os da primeira metade, que costuma ter maior ocorrência dos estágios de sono mais profundo, tivessem um desempenho melhor do que os que dormiam apenas a segunda metade que tem uma maior prevalência do sono REM (Rapid Eyes Movement), no qual ocorrem os sonhos. Esses achados podem indicar que o processo de consolidação é algo contínuo durante a noite, e que dormir todas as horas necessárias é essencial para tanto.

E vendo a notícia completa a que a manchete acima se referia, falava-se de mais um estudo dessa linha, então diferente de mais uma promessa mirabolante de um método para se aprender dormindo, Estaria mais em dormir para aprender o que seu cérebro treinou quando se estava acordado, então a novidade seria que agora estão querendo usar exames de imagem para ver o cérebro continuar sua adaptação. A adaptação é inicialmente vista durante a sessão de treino com um jogo de interface cérebro máquina, um jogo de vídeo-game que, em vez de se usar um controle remoto físico, se usa ondas cerebrais captadas por eletrodos para realizar as tarefas do jogo, e o cérebro parece continuar se adaptando ã essa tarefa treinada durante o sono.

"Provas finais na semana que vem... Vou tirar uma soneca agora, assim não estarei cansando quando decidir estudar."

“Provas finais na semana que vem… Vou tirar uma soneca agora, assim não estarei cansando quando decidir estudar.”

Sendo assim, dormir está longe de ser um desperdício de tempo, e virar noites estudando crendo que depois se pode compensar as noites de sono perdidas não é o método mais eficaz de estudo. Sim, precisamos dormir durante toda uma noite para, de fato, aprendermos e retermos memórias. Isso não apenas de coisas inteiramente novas mas, pela característica mutável de nossas memórias, essa lógica serve também para memórias antigas, coisas que já aprendemos e depois revemos, usamos, que aprimoramos durante o dia. Cada vez que fazemos com que algo venha à tona de nossa memória, podemos modificar, ou reaprender aquela informação com algum novo detalhe, e é após a noite de sono seguinte que tudo isso se reconsolida. O melhor método para se aprender de fato é, portanto, algo que há muito se aconselha, mesmo que muitos não levem tão a sério: é treinar, mas treinar muito durante o dia, ter contato com o que se deseja aprender, e em seguida ter uma boa noite de sono para consolidar o que se aprendeu e poder lembrar não só nas poucas horas seguintes, mas a qualquer momento que seja necessário.

 

Referências:

Jornal com a notícia referente a chamada citada: Jornal da Cultura Primeira edição dia 22/07/2014 https://www.youtube.com/watch?v=D1OF0jNDVE8 (chamada inicial no começo do jornal, reportagem completa dos 22min55 até 24min14.)

Chraif, M. (2012) The influence of sleep deprivation on short term memory and attention to details in young students. Procedia-Social and Behavioral Sciences 33, 1052-1056.  Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1877042812002911

Stickgold R, James L & Hobson JA (2000). Visual discrimination learning requires sleep after training. Nature Neuroscience 3, 1237-1238. Disponível em: http://www.nature.com/neuro/journal/v3/n12/full/nn1200_1237.html

>> Outros textos de blogs sobre divulgação científica sobre o assunto, que explicam mais detalhadamente alguns dos estudos citados:

http://blog.educacaoadventista.org.br/superciencia/index.php?op=post&idpost=33

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/cerebro-nosso-de-cada-dia/mais-duas-boas-razoes-para-dormir

http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/cerebro-nosso-de-cada-dia/enfim-alguma-coisa-que-se-aprende-durante-o-sono

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