Cegueira à escolha: justificando escolhas que não fizemos

Por Giulia Ventorim

Caso você ainda não conheça o fenômeno denominado como “cegueira à escolha”, imagine-se na seguinte situação. Enquanto lê esse post, você fica com sede e decide pegar um copo de suco de laranja para beber. Eis que ele, repentinamente, o suco do seu copo se transformara em suco de goiaba. “Essas trocas não acontecem no dia-a-dia”, tudo bem, mas qual imaginaria ser sua reação caso acontecessem? “Ficaria assustado”, “Com certeza perceberia”, você poderia responder. Faz parte do senso comum que, se fazemos uma escolha (beber suco de laranja), notaremos se houve uma troca naquilo que decidimos (ter suco de goiaba no seu copo).MatrixBluePillRedPill

Não só o senso comum: essa teoria costumava ser aceita como essencial para a sobrevivência adaptativa. Uma publicação de 2005 na revista Science por pesquisadores suecos, porém, pode nos fazer aceitar que uma considerável parte das pessoas poderia não perceber a troca. E o mais impressionante: se perguntadas sobre o motivo, ainda justificaria sem problemas o porquê de sua escolha. Mas como isso pode acontecer?

 

Na verdade, situações de trocas como essa são possíveis, e, tendo isso em vista, Petter Johansson e Lars Hall (entre outros) decidiram fazer um experimento investigando as relações entre intenção, escolha e introspecção. Pediram a cada um de seus 120 voluntários que elegessem dentre um par de fotos a garota representada que considerassem mais bonita. O que os voluntários não esperavam é que um quinto de suas respostas era trocado por meio de um truque de mágica, mas, quando questionados sobre o porquê da “escolha”, a maioria respondia sem desconfiar de nada. Defendiam a imagem rejeitada como se a tivessem elegido. Essa disjunção entre escolha e resposta foi nomeada como cegueira à escolha (choice blindness).

Os resultados do experimento foram no mínimo intrigantes: de 354 imagens manipuladas, somente 46 mudanças (13%) foram detectadas (3 de 15 pares de imagens por participantes eram manipulados, e, uma vez detectada a troca, as demais tentativas eram descartadas). A similaridade entre os rostos não causou influência nos resultados. Mas, quando era permitido tempo livre para o voluntário decidir que imagem escolher, o número de detecções aumentou. Isso sugere (como é dito pelos autores) que há importância de um critério individual para controlar decisões, embora mesmo aqueles que tiveram tempo reduzido (2 e 5 segundos) afirmaram terem tido tempo o suficiente para decidir. De qualquer forma, mesmo com tempo livre, a proporção de trocas identificadas não passou de 27%.

O mais interessante do que foi demonstrado é que, quando perguntados sobre a razão de suas escolhas, pessoas comuns podem possuir relatos com confabulação (em um de seus diversos entendimentos: relatos inventados para justificar algo depois que já aconteceu). Ou seja: nem sempre nos justificamos baseando apenas no que ocorreu, e sim muitas vezes criamos os motivos, ainda que sem ter consciência disso. Além de ser apenas interessante, a descoberta pode nos ajudar a compreender eventos de nossa vida pessoal. Por exemplo: é muito comum que entremos em discussões verbais em que tentamos explicar uma decisão. Criamos justificativas elaboradas e extremamente coerentes. Podemos, porém, estarmos sem querer enganando a nós mesmos enquanto somos vítimas da cegueira à escolha. Com isso, chegamos a um dilema: o que sabemos sobre nós mesmos, ou mais especificamente, o que é decidimos de verdade, já que inventamos nossas justificativas? Seria complicado estabelecer cientificamente o que é uma decisão verdadeira ou não. Poderíamos dizer que é algo “que vem de dentro”, ok, mas para que isso possa ter aceitação científica seria necessário definir o que é esse “algo” e o que “vem de dentro”. É mesmo difícil construir algo que envolve tanta subjetividade no meio científico, em que é necessário definir os termos e criar um método sistemático passível de repetições. Mas, sem dúvidas, a descoberta desta ocorrência nos pode ajudar no dia-a-dia ao contribuir com o que sabemos sobre nós mesmos, além de (claro) ter contribuído substancialmente ao conhecimento científico e auxiliar estudos posteriores.

SHDe15_ClinicalSagBrain1LR1Há muito mais para se discutir sobre isso, e, de fato, muito mais foi discutido e pesquisado. O interesse de Johansson, Hall e demais pesquisadores envolvidos sobre o tema de “cegueira à escolha” não parou por aí. Fizeram experimentos relacionando o fenômeno com outras modalidades, como o domínio linguístico (link) e o gosto de chás e geleias em supermercados (link); estudaram também a relação entre “cegueira à escolha” e “cegueira à mudança” (link, indisponível gratuitamente); e ainda estabeleceram importância da descoberta como instrumento para diagnóstico do transtorno obsessivo-compulsivo (link). Outras publicações sobre o assunto podem ser vistas neste site, referente ao grupo do laboratório de pesquisa sobre cegueira à escolha da universidade de Lund, na Suécia. Lá, é possível acompanhar também novas publicações relacionadas ao fenômeno.

Muitos artigos relacionados ao assunto estão disponíveis na internet (e agrupados no site do grupo de laboratório). Pode visualizá-los, caso tenha interesse – ou melhor, seja qual for a justificativa que der para ler (ou não ler), agora que sabe que nossas próprias justificativas podem ser enganosas.

Fontes:

http://www.lucs.lu.se/choice-blindness-group/#pub1

http://www.lucs.lu.se/wp-content/uploads/2014/03/Aardema-et-al-2014-Choice-blindness-confabulatory-introspection-and-OCD.pdf

https://www.jstage.jst.go.jp/article/psysoc/51/2/51_2_142/_article

http://www.lucs.lu.se/wp-content/uploads/2011/01/Hall-et-al.-2010-Magic-at-the-Marketplace-Choice-Blindness-for-the-Taste-of-Jam-and-the-Smell-of-Tea.pdf

http://www.lucs.lu.se/wp-content/uploads/2014/04/Lind-et-al.-Real%E2%80%90Time-Speech-Exchange-indicates-that-we-use-auditory-feedback-to-specify-the-meaning-of-what-we-say.pdf

http://www.lucs.lu.se/wp-content/uploads/2011/01/Johansson-et-al.-2005-Failure-to-Detect-Mismatches-Between-Intention-and-Outcome-in-a-Simple-Decision-Task.pdf

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