Falsas memórias – O que realmente aconteceu naquele dia?

por Leandro Faria Domiciano

Um período problemático, cheio de abusos e violência por parte de seu pai, um clérigo. Duas ocasiões de gravidez incestuosa interrompidas à força, inclusive com ajuda de sua mãe. Era assim que Beth Rutherford, aos 22 anos no estado do Missouri, narrava sua infância. Quando essas acusações se tornaram públicas, após aconselhamento de um membro da igreja local, o pai de Beth renunciou ao cargo na igreja e passou pela experiência da rejeição pública, o que talvez fosse merecido, se um exame médico na jovem não demonstrasse, mais tarde, que ela ainda era virgem e suas alegações não passavam de fantasias.

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Pioneira no estudo das falsas memórias, a psicóloga cognitiva norte-americana Elizabeth Loftus afirma que mesmo nossas lembranças mais enraizadas, em especial aquelas a respeito de nossa infância, podem nem sempre ser coerentes com a realidade. A sugestão ou indução de informações por pessoas conhecidas, proposital ou não, a revisitação de lembranças antigas e outras práticas a que comumente estamos expostos pode implantar ou modificar dados em nossa memória. Segundo a especialista, essas lembranças sem base na realidade passam a ser mentalmente indistinguíveis de memórias verdadeiras, e a única maneira de confirmá-las ou desmenti-las é através de evidências físicas.

Loftus demonstrou esse conceito em um experimento célebre na década de 1990. 24 voluntários e suas famílias foram recrutados, e lhes foi dito que participariam de um experimento que objetivava mostrar as diferenças entre as lembranças de acontecimentos passados por eles e pelos parentes. Cada família contou à pesquisadora três histórias relativas à infância dos participantes, sem que eles soubessem. Eram histórias de festas de aniversário, pequenos incidentes familiares, viagens a passeio e outros fatos. Além disso, ajudaram a pesquisadora a preparar uma história fictícia que envolvia um passeio a um shopping ou loja de departamentos, onde supostamente o participante teria se perdido da família, ficado angustiado, sido ajudado por uma senhora idosa e mais tarde reencontrado os pais.

As quatro histórias, três reais e uma fictícia, foram então lidas para o participantes para que respondessem se recordavam ou não dos eventos. 68% das histórias verdadeiras foram lembradas pelos voluntários, mas o mais espantoso é que 29% deles alegaram lembrar-se parcialmente ou totalmente do evento da ida ao shopping, que jamais havia acontecido. Ainda mais incrível é que mesmo depois do estudo, seis participantes continuaram acreditando no episódio, mesmo que a pesquisadora e os familiares já tivessem desmentido a história.

5-cosas-que-no-sabias-sobre-la-memoria-humana-5As implicações desse fato na sociedade atual são enormes, como no caso citado de alegações de abuso sexual na infância. A pesquisadora Luiziania Schaefer e mais duas pesquisadoras da PUC-RS destacam em artigo de 2012 que a averiguação dos fatos é complexa, principalmente porque não são comuns os casos em que há material físico para ser usado como evidência, ainda mais porque muitos casos só são relatados meses ou anos após o suposto ocorrido. A saída, para elas, é uma avaliação pericial psicológica abrangente levando em conta o contexto geral da situação da criança, e o preparo técnico é o que deve garantir a neutralidade dessas avaliações. Outro estudo da mesma universidade e do mesmo ano, de Márcio Englert Barbosa e duas outras pesquisadoras, realizado com 168 estudantes universitários, mostrou que o estado de alerta com que a pessoa recebe a informação também possui um papel importante na criação de falsas memórias. Os participantes foram divididos em grupos e levados a uma sala onde uma história lhes foi apresentada através de uma sequência de slides com narração em áudio. Os slides eram idênticos para os dois grupos, e mostravam cenas de uma mulher e seu filho indo até um hospital, onde o pai da criança trabalhava, cenas de um acidente de carro, de procedimentos hospitalares e da mãe ligando de um telefone público para chamar um táxi. A narração ouvida por ambos os grupos iniciava dizendo que esposa e filho iriam visitar o homem no trabalho, a partir daí as versões da história diferiram. A um grupo foi narrado que a criança sofreu um acidente, foi levada até o hospital e suas pernas precisaram ser reimplantadas. O outro grupo ouviu que na verdade os dois apenas viram um acidente no caminho e assistiram a uma simulação de atendimento de emergência. Verificou-se então que a história mais dramática, que potencializava mais o estado de alerta dos participantes, fez com que eles se lembrassem de mais informações verdadeiras relacionadas a detalhes secundários da história, mas também fez com que tivessem mais lembranças falsas de aspectos centrais da narrativa.

entrada-cartao-memoria-cerebroOutro estudo relacionado ao tema, publicado em 2011 por pesquisadores da UFRGS, mostrou que falsas memórias também estão relacionadas ao tempo que uma pessoa é exposta à informação verdadeira. Quase 300 participantes foram divididos em três grupos e realizaram o teste pictórico de memória, que consiste em olhar uma imagem com várias figuras e depois tentar descrever os símbolos que viu. Os participantes que haviam observado o quadro com as figuras por mais tempo conseguiram ter mais lembranças verdadeiras e menos lembranças falsas do que aqueles que tinham ficado expostos menos tempo ao quadro. Isso é um forte indício de que as memórias que possuímos de fatos que ocorreram muito bruscamente ou rapidamente estão mais sujeitas a distorções de memória do que aqueles acontecimentos que pudemos vivenciar por tempo prolongado.

As conclusões desses estudos lançam várias dúvidas sobre práticas historicamente validadas pela sociedade. Ainda hoje, muitas pessoas são presas com base em relatos de testemunhas oculares ou de supostas vítimas de abuso. Os resultados também explicam muito do funcionamento dos relatos de acontecimentos estranhos como abduções alienígenas ou contato com seres de outras dimensões, e máquinas baseadas unicamente no reconhecimento de sinais fisiológicos das pessoas são inadvertidamente utilizadas como detectores de mentira eficazes. Conforme disse Elizabeth Loftus, não há nenhum método intrinsecamente psicológico para desmentir as falsas memórias depois que foram implantadas, então inevitavelmente boa parte de nossas lembranças mais remotas são, na melhor das hipóteses, distorções de fatos. Essa realidade perturbadora deve, portanto, ser amplamente conhecida para que possamos reconhecer que talvez jamais saberemos o que realmente aconteceu naquele dia.

 

Referências:

BARBOSA, Márcio Englert; BRUST-RENCK, Priscila Goergen; STEIN, Lilian
Milnitsky. O papel do alerta nas memórias verdadeiras e falsas para informações centrais e periféricas. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre , v. 27, n. 1, Mar. 2014 .

LOFTUS, E.F., 1997. Creating False Memories. Scientific American, September 1997, Vol. 277, No. 3, pgs. 70-75. (Revista de divulgação).

MACHADO, Fernanda; LOPES, Ederaldo José. Falsas memórias no Teste Pictórico de Memória. Psicologia: Reflexão e Crítica [On-line] 2012.

SCHAEFER, Luiziana Souto; ROSSETTO, Silvana; KRISTENSEN, Christian Haag. Perícia psicológica no abuso sexual de crianças e adolescentes. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília , v. 28, n. 2, June 2012 .

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