Cinema: um laboratório de cognição humana natural

Por: Fernanda Bueno

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Se você está acostumado a ler artigos científicos sobre cognição humana deve se deparar muito com tarefas altamente controladas, pessoas sentadas e quase imóveis na frente de um computador ou dentro de uma máquina de ressonância magnética, realizando tarefas um tanto tediosas, como ouvir alguns sons ou apertar alguns botões. Elas são extremamente importantes para o entendimento de capacidades e funções cognitivas individuais, sem que haja, ou ao menos minimize, a influência de uma outras. No entanto muito se questiona sobre o quanto vale esses experimentos para a vida real.

Colagem por Fernanda Bueno (Imagens retiradas do Google)

Colagem por Fernanda Bueno (Imagens retiradas do Google)

Um caminho novo tenta aproximar os experimentos com a atividade humana real. Esse é o caminho do neurocinema, uma proposta de usar um estímulo “natural”, o filme, em experimentos sobre cognição e neurociência. É um estímulo natural no sentido de que um filme faz parte da nossa cultura, e por vezes representa uma visão do mundo por um olhar humano. Os mesmos cuidados de experimentos controlados são usados nesses estudos, porém o estímulo é mais próximo ao cotidiano. Exemplos são as pesquisas de Uri Hassan e colegas que, num artigo publicado na revista Projectíons em 2008, resumem alguns desses estudos e de como é possível analisar a sincronia da atividade cerebral entre indivíduos assistindo um mesmo filme. Os autores sugerem que essas descobertas podem ser usadas tanto para o estudo das funções cognitivas como também ajudar aos profissionais do cinema a melhorarem a incrível capacidade de prender a atenção

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dos espectadores. O cinema traz a possibilidades de estudar importantes faculdades cognitivas, como a memória de trabalho, a cronestesia (ou a viagem temporal mental) e viagem emocional mental. Para os supersticiosos, o número sete da sétima arte pode ter algum significado mágico. De fato, há algo além no cinema para estudos em neurociência, se comparada a outras artes. O cinema é capaz de criar um estado dissociativo transitório, como afirma o pesquisador Yadin Dudai numa publicação em 2012, pois envolve estímulos multimodais.

Memória e Cinema

A memória de trabalho é a ponte entre dois tipos de memória, a de curto e longo prazo. Se colocarmos em uma escala de tempo, a memória de curto prazo é aquela que se refere à percepção do agora e da retenção temporária de segundos a minutos de informações ambientais. O segundo tipo de memória está na escala de tempo de meses, anos ou até o fim da vida, isto é, aquilo que guardamos das nossas experiências e aprendizados, seja de forma explícita ou implícita. A memória de trabalho pode ser vista como a integração daquelas, sendo seu componente central executivo o responsável pela atenção, mediação e retenção de memórias para sistema de longo prazo, através do buffer episódico. A memória de trabalho contém outros dois componentes, a alça fonológica e o esboço visuoespacial. Imagine que você precise se lembrar de uma senha de quatro números. Você os repete em voz alta e depois continua repetindo internamente. Esse é o papel da alça fonológica, que guarda e atualiza informações auditivas. Agora você precisa decorar um caminho em um mapa e assim mantém na mente uma imagem e o desenho do caminho. Dessa forma estará usando o esboço visuoespacial.

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E como os filmes se encaixam nesse modelo? Filmes são primariamente e principalmente visuais. Nós somos seres visuais, prestamos atenção e confiamos na nossa visão. Os filmes também contam com um dos fatores que mais chamam nossa atenção, o movimento. Essas características intrínsecas do cinema envolvem nossa memória, principalmente o central executivo e o esboço visuoespacial. Os filmes também contam com sons, músicas e falas. Esses estímulos auditivos ativam a alça fonológica. Interessante que mesmo em filmes mudos, as áreas de linguagem ativadas na escuta de um discurso são também ativadas pela tentativa de decifrar o movimento labial das personagens. O buffer episódico trabalha conectando fatos e consolidando a memória de longo prazo. Se os eventos a serem conectados durarem longos períodos (horas ou dias) a consolidação da memória pode ser interferida por outras causas. O papel do diretor no cinema é selecionar alguns eventos para que estes prendam a atenção do espectador, ajudando a memória de trabalho a formar a história na mente.

A atenção ao filme é influenciada também pela desfamiliarização do espectador com o contexto. Em outras palavras, existem personagens e existe uma relação com a audiência, porém não há interações sociais explícitas entre elas, o que pode causar um maior engajamento do central executivo na atenção. A sugestão é que, se a atenção ao

 filme toma grande parte da função do central executivo, pode haver um estado mental dissociativo transitório leve (aquela sensação de que o mundo se torna diferente depois de sair de uma sessão de cinema ou passar horas assistindo séries). É claro que esses estados de devaneio são subjetivos, ou seja, ocorrem diferentemente para cada um.

Viagens mentais: tempo e emoção

O cinema tem a habilidade de nos fazer viajar. Conseguimos conhecer um personagem, sua história e suas emoções em algumas horas de filme. A cronestesia, ou a viagem temporal mental, é um termo cunhado por Endel Tulving, um professor da Universidade de Toronto, Canadá, que significa a capacidade cognitiva de se ter consciência declarativa de fatos passados e de construir possibilidades futuras mentalmente. É uma capacidade de viajar no tempo pelas experiências de vida, provavelmente consolidada só em humanos. Esta é uma capacidade como a visual, semântica, auditiva, entre outras, porém ainda não apresenta correlatos neurais, sistemas anatômicos que descrevam como isso é possível. Sabe-se que está relacionada com a memória episódica, e deve ser um fator importante para a evolução desse tipo de memória. Os filmes aumentam essa capacidade, pois é uma mistura multimodal de percepção de eventos, direcionando a atenção e trabalhando o buffer episódico.

A emoção define-se como o sentimento subjetivo que acompanha situações do ambiente e pode disparar respostas fisiológicas e comportamentais no indivíduo. A empatia que envolve a personagem ou a situação do filme e a audiência faz com que esses espectadores tenham respostas emocionais. São aquelas “borboletas

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na barriga” ao se ver uma cena romântica ou se assustar com uma cena de terror. Essa capacidade possibilita ao espectador viajar num espectro de emoções, se colocando no lugar de uma outra pessoa.

O cinema é uma arte que faz uso de várias tecnologias e apresenta, do ponto de vista cognitivo, estímulos multimodais, fato difícil de se encontrar em outras artes, como a pintura, que é essencialmente visual. Assistir a filmes é uma atividade prazerosa e que prende a atenção. Lógico que depende do estilo e experiência subjetiva de cada espectador para gostar ou não de um determinado filme. No entanto é clara a participação do cinema na maioria das culturas, de forma global, e esta pode ser combinada com estudos da cognição humana para se obter um caminho comum entre a arte e a mente.

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Referências:

Tulving, E. (2002) Chronesthesia: Conscious Awareness of Subjective Time. In: Stuss, D.T., Knight, R.T. Principles of Frontal Lobe Function. Oxford University Press; 1ªed, 2002

Dudai Y (2012) The cinema-cognition dialogue: a match made in brain. Front. Hum. Neurosci. 6:248. doi:10.3389/fnhum.2012.00248

Hasson, U., Landsman, O., Knappmeyer, B., Vallines, I., Rubin, N., and Heeger, D. J. (2008). Neurocinematics: the neuroscience of film. Projections 2, 1–26.

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